sábado, 28 de setembro de 2013

Ilha

A semente, o mote.
O sentimento, as voltas.
E eu, redondilha.

(28.09.2010)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O menino

O menino, de bebê que um dia foi, rapidamente se tornou criança. E, como criança, um dia percebeu que sentia coisas.

De vez em quando ele estava ocupado com algo e começava, de repente, a pensar em outra coisa. E o pensamento ficava lá, em volta dele, não deixando mais que ele se concentrasse no que estava fazendo primeiro. E ele parava toda hora para pensar em como seria bom estar fazendo aquela outra coisa.

Outras vezes, ficava esperando a aula acabar e pensando, pensando na hora do almoço, e em vários cheiros e cores bons de se comer, que pesavam no estômago mesmo sem existir ainda na frente dele.

Ou às vezes ele estava estudando, ou brincando, ou cismando, e recebia na cabeça uma foto da sua mãe, que estava longe naquela hora. Ou do quintal da casa da vó, ou do som da risada dela, o do cheiro do bolo que ela fazia. Ou via o sol na grama e pensava em correr naquela grama que não estava ali.

E com o tempo, ele foi descobrindo que todas aquelas coisas que ele sentia já tinham um nome do lado de fora. Vontade, fome, saudade. E ele, tão pequeno no seu modo de criança, percebia que mesmo não sabendo nada, já tinha experimentando um monte de coisas daquelas que os adultos falavam.

Daí o menino cresceu e foi se esquecendo dos tantos sentimentos que cabem num nome único de se sentir.

Fome virou fome. Saudade virou saudade. Vontade virou vontade. E pronto.

E as palavras foram tomando o lugar dos miúdos pedaços de pensamento que volteavam o peito e as idéias do menino, que ele experimentava e que o experimentavam muito antes de ele saber o nome.

Então um dia, cansado de carregar tantas letras no bolso, ele resolveu colocar todas numa folha de papel. Pra ver se aliviava um pouco o peso das idéias.

E percebeu que as palavras, quando caíam no papel, parecia que nasciam de novo. Cresciam, formavam família na folha em branco. E começavam a voar, sozinhas, se mostrando de volta para a vista do homem que fora menino.

E ele começou a escrever mais e mais. E a pensar melhor, e a redescobrir a face oculta das palavras de todo dia. E as palavras começaram a viajar pela mão do menino que era homem. A encontrar idéias encolhidas nas cabeças de outras pessoas, que reconheciam as velhas letras, riam e se emocionavam.

E o menino-homem andou muito, falou muito e escreveu muito também. E todos perguntavam a ele onde ia buscar aquelas poções milagrosas que colocava nas letras.

E apenas alguns poucos percebiam que, na verdade, ele apenas enxergava aquilo que, na aurora dos dias, todas as mentes falantes aprendem a encaixar, pacificamente, no correr do calendário.

(05.08.2010)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Dia do Perdão Universal


Há muito tempo, li um texto de que já não lembro a fonte. Mas falava de um homem que, amargurado pelas tristezas e provas da vida, foi procurar um sábio em busca de paz.
Ao chegar ao destino, começou a desfiar na frente do sábio todos os seus infortúnios: a perda da esposa, a derrocada financeira, os filhos que o haviam decepcionado e abandonado. Todos, desastres que aconteceram sem maiores explicações, deixando-o sem nada daquilo que tinha batalhado para conquistar. Finalmente, ele tinha desistido de buscar novos horizontes. "Deus foi duro demais comigo", disse.
Ao que o sábio respondeu: "Sim, Deus foi duro com você. Mas você foi ainda mais duro que Ele".

No Dia do Perdão Universal (que assinala também o início do Novo Ano Maia, como bem lembrou a mana Taís), essa é uma boa lição na qual pensar. Deixemos de procurar a pessoa que, à nossa volta, precisa mais de nosso perdão: ela está mais perto do que pensamos. Tantas vezes desperdiçamos oportunidades por achar que não estamos preparados, que não devemos ou não podemos nos jogar para a vida. Por achar que não somos ou não fomos suficientemente bons para as bênçãos que nos são oferecidas.

Deixemos de nos recriminar pelo que poderíamos ter feito em determinado momento; fizemos daquela maneira porque é o melhor que poderíamos ter feito com aquilo de que dispúnhamos em nosso íntimo. Utilizemos as experiências do passado não como lembranças recriminadores de culpa, mas sim como lições libertadoras de aprendizado.
Deixemos de ter medo de viver algo belo, por achar que aquilo um dia acabará: estaremos desperdiçando o bem mais precioso, o único que realmente existe - o dia de Hoje.

Hoje, decido deixar para trás todo o peso, todos os pensamentos inúteis de sofrimento imaginário. Decido aceitar o outro sem expectativas, mas compreendendo que o que ele me oferece é o que de melhor ele pode oferecer no momento. E assim, procuro construir um Hoje e um Amanhã mais bonitos, baseados no que realmente existe e no que a vida, essa Deusa generosa, pode trazer - sem me encarcerar em expectativas falsas criadas por mim mesma.

Que possamos cultivar, sempre que possível, a filosofia do perdão interno e da generosidade.

E sigamos caminhando, com a leveza do vento. E que bons ventos nos tragam um belo Ano Novo!

(25.07.2007)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Diariamente (revisitado)

Para dias frios, chocolate
Para dias cinzas, capuccino
Para dias de sol, água
Para dias chuvosos, carona
Para atrasos, álibi
Para desmotor, ônibus
Para o amor, possibilidade
Para barriga, caminhada
Para emagrecer, fechar a boca
Para o nó na garganta, terapia
Para medo de altura, medo de altura
Para sono, café
Para dor-de-cabeça, piadas
Para salvar feriados, salário
Para bater papo, cerveja
Para o beijo, abraço
Para ansiedade, chegar cedo
Para esquecer, sair tarde
Para superar, novidade
Para o olhar, palavra
Para a palavra, sentido
Para o sentido, coragem
Para o almoço, filé com fritas
Para a lembrança, gavetas
Para dormir, cobertas
Para trabalhar, música
Para viajar, ar puro
Para planejar, futuro
Para o telefone, tempo
Para as plantas, sol
Para tatuagem, inspiração
Para exorcizar, amigos
Para se mexer, estender a mão
Para olhar para dentro, engenho
Para dar um passo, invento

(29.05.2007)

domingo, 31 de março de 2013

Rima pobre

Será que é tensão
de fim de remédio
ou é correria
de fim de período
ou ansiedade
de novo começo
ou medo de água
em barco correndo
ou será que a primeira
mulher desse mundo
durante a primeira
aurora ou ocaso
já tinha notícia
da dor de caber
nos rios de dentro?

(31.03.2010)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O que me deixaria feliz hoje?

O fim da corrupção?
Que a hipocrisia saísse de moda?
Que meu espírito evoluísse?
Que os caixas de supermercado sempre tivessem troco?
Que meu ônibus nunca atrasasse, e sempre viesse vazio?
Um ar-condicionado que funcionasse (ecológico, é claro), para aliviar o calor senegalês desta sala cheia de almas escarpadas?
Ou ainda melhor, janelas abertas para sentir o vento? Ou para voar?
Um revisor eficiente? Um editor são?
Uma língua sem cacófatos?
Uma internet isenta de mal-entendidos e páginas não-carregadas?
Uma carona depois do trabalho?
Um chopp gelado?
Uma massagem com luz indireta?
O fim do efeito estufa?
Dinheiro infinito na conta?
Um beijo inadvertido? Sincero? Arrebatador?

(05.02.2007)

sábado, 5 de janeiro de 2013

Viajar

Rodoviária de São Paulo. Enquanto espero o horário da minha partida, acho um lugar entre as cadeiras apinhadas do final de ano e, em meio ao burburinho geral, tento me concentrar na leitura da vez: Sob o sol da Toscana, de Frances Mayes. Do filme que inspirou, a obra tem muito pouco - eu arriscaria dizer que somente o local onde é ambientada. Mais do que um romance ensolarado, é uma história sobre os desafios práticos de reerguer uma casa e, principalmente, sobre os devaneios de uma escritora que se dispõe a, a partir dessa casa, mergulhar para fora e para dentro em novos mundos. Leio:

A maioria das viagens tem um aspecto subjacente de busca. Estamos à procura de alguma coisa. Do quê? Diversão, fuga, aventura, mas e depois? "Essa viagem é uma mudança de vida", disse meu sobrinho. Será que ele sabia disso desde a partida? Que vinha à Itália à procura da confirmação de uma mudança que ele sentia crescer no seu íntimo? Suponho que não; ele fez a descoberta enquanto viajava.

Interrompo para refletir sobre as palavras que acabei de ler. Bem ao meu lado, reparo numa família um tanto agitada - dois rapazes, uma moça com um bebê de colo, outra moça, várias crianças. A moça sem o bebê está com lágrimas nos olhos. Eles se abraçam e se organizam para tirar uma foto.
Continuo:

Existe por trás dessas viagens um forte ímpeto no sentido do "me tirem daqui". (...) Não se trata do destino; trata-se da capacidade de estar com o pé na estrada, seguir por trilhas felizes, lá longe onde ninguém sabe, ninguém compreende, nem se importa em saber de todas as coisas enlouquecedoras que andam pesando nos seus ombros. (...) As pessoas viajam por tantas razões quantas têm para não viajar. "Estou tão feliz por ter ido a Londres", disse-me uma colega de faculdade. "Agora, nunca mais preciso voltar lá".

É uma perspectiva inusitada. A viagem não só como lazer ou fuga, mas como uma missão que se 'tica' no plano de aspirações cumpridas. Faz sentido, também. Ao meu lado, a foto já foi tirada. As crianças e adultos se abraçam ainda. Aproveitam o gesto ainda tão próximo, tão possível antes que venham os quilômetros, os dias, o tempo. No rosto das mulheres, uma calma resignada, de quem não pode escapar do momento. A moça das lágrimas sorri para a outra e faz um carinho no bebê adormecido.

Uma vez que se esteja 'em um' lugar, aquela viagem ao interior profundo da psique começa ou não. Algo deve tornar seu esse lugar, aquele 'algo' inefável que nenhum livro consegue captar. Pode ser algo muito simples, como a luz que vi no rosto de três mulheres andando de braços dados quando o sol do final da tarde caía inclinado na Rugapiana. Aquela 'luz' parecia brilhar como uma bênção sobre todos. Eu também queria banhar minha pele num sol daqueles.

Agora todos se despedem e metade do grupo se afasta. Um dos rapazes que fica recomenda: quanto chegarem, liguem. As crianças ainda olham para trás, curiosas, antes de desaparecerem na escada rolante. Logo, todos se levantam e não há mais abraços ou foto. Novas malas chegam, trazidas pelos ocupantes das cadeiras onde estavam as moças e o bebê.

Olhando para o relógio que pende do teto, eu também me levanto e vou embora, pensando em todas as coisas, pequenas e arrebatadoras, que já me fizeram sentir em casa. Acho que cada pessoa, mais cedo ou mais tarde, encontra o seu 'algo' pelo qual moveria montanhas, dentro e fora da alma. Ou vários, com sorte.

(05.01.2009)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Olhicerúlea

Ilustr. Stephanie Pui-Mun Law

Ninguém pode dizer o que vai pelo coração de uma mulher. O continente negro, como chamou Freud. O oceano infindável, o olhar profundo que vasculha com exatidão as almas alheias. Para aprender a ser mulher, há que se viver uma vida toda. Ou muitas. Nessas coisas a menina já pensava muito antes de perceber que pensava. Aliás, sempre pensou muito, essa menina. Um arsenal de espadas rodopiavam pela sua mente, às vezes afiadas, às vezes ferinas, às vezes intuitivas e adivinhatórias, mas sempre velozes. Ensinaram muito a ela, embora tenham cobrado de seu estômago e de sua paz de espírito algumas contas. Com o passar dos anos, a menina foi aprendendo a se equilibrar nas ondas do pensamento e nas tormentas do sentimento que havia dentro dela. Equilíbrio para o qual, também, há que se ter tempo. Um tempo de observadora, de estrategista até. Tempo de quem ouve mais do que fala, dos silêncios de uma mente ocupada com o que vai por dentro, comparando, perguntando. Tempo de quem precisa se entender e vai tentando também entender os outros, sem movimentos bruscos, com palavras econômicas porém certeiras e o olhar perguntador de um quase sacerdócio de autoconhecimento. Um tempo de Sacerdotisa.


Mas os caminhos de dentro também se revelaram atalho para o mundo lá fora. A menina percebeu que seria impossível se conhecer totalmente sem conhecer o outro, sem conhecer o livro do mundo, sentir sua luz nos olhos, seu calor na pele e seus caminhos sob os pés. Então decidiu correr por aí, por terra, por palavras ou até mesmo por lembranças suas e de outros. Usou a mente e o coração fundos da Sacerdotisa para traçar novas rotas nas terras de fora. E assim, dando voz aos pensamentos e enchendo os cálices da sensibilidade, percebeu que também suas palavras poderiam ser sementes de novas vidas. Pedaços de história que ela poderia alinhavar com as de outros, com a sua própria, com a história do céu e da terra. Viu germinar os caminhos que escolheu, assim como suas palavras nos corações das pessoas que, como ela, vinham de solo assim mutante, assim fértil. Domou o medo, nutriu-se do pomar de amizades, carinhos e sonhos que esses caminhos lhe proporcionaram. E forjada em amores, lutas e dores, se descobriu também Imperatriz.

Essa menina, porém, ainda achava que não sabia nada. E continuou buscando, andando, mudando. Ficava angustiada em acreditar que, quando mais se anda, menos se sabe. Até que, um dia, vieram as ideias, trazidas pelas espadas já companheiras, em movimento silencioso e certeiro: de que o viajar é a grande lição da viagem. De que a música não é feita apenas do som, mas também do intervalo de silêncio entre as notas. E de que, como bolo em cozimento, a sabedoria vai se formando assim, no silencioso do coração, até que um dia brota com cheiro de alimento fresco na nossa mente.

Depois disso, a menina já anda com mais calma pelas estradas da vida, ainda tentando entender os repentes e voltas de sua natureza humana e feminina. Mas já agora, degustando a sabedoria do instante, aparando as arestas e buscando a dança sincrônica com as espadas que ainda voam - ouvindo com atenção as histórias do que há lá na frente, lá longe ou aqui ao lado. Em meio às tempestades e estios, cultiva com orgulho sereno seu lado aprendiz, na leveza de uma criança de copas. A cada dia, busca nadar melhor nas correntes profundas da sabedoria desse Sacerdócio. E nesta toada, vai lançando sementes douradas que formam, ao lado das famílias da alma, seu novo caminho e colheita.

(20.12.2009)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Trato entre iguais

A partir de hoje, nem eu e nem você vamos pensar primeiro em mentir para nos preservar. Não vamos mais seguir o jogo que nos ensinaram, em nome da proteção que não existe. Eu vou te ligar sem que você se sinta invadido, sem que eu me pergunte se sou louca por ter pensado em você num final de tarde. Você vai me ligar quando tiver vontade, sem que eu me censure pelos planos que farei ou pela alegria que me assaltar quando o telefone tocar.

Você não se sentirá covarde ao pensar em mim, nem deixará que seu sentimento seja questionado. Não perderá mais um segundo tentando não ser ou não sentir. Desafiará o senso comum - inclusive o próprio - em nome de sua autenticidade. Assumirá vontades antes que elas virem ilusão ou possibilidade perdida no passado. Conhecerá seus próprios pensamentos para que suas palavras saiam autênticas, sempre. E dessa forma eu jamais duvidarei delas.

Eu deixarei de acreditar em contos de fadas para acreditar na verdade, a verdade pura e cristalina de um ser de carne e osso, com mazelas e defeitos, beleza e grandeza, agruras e feridas, um ser como eu. Que traga consigo o olhar de quem procura um porto para os sonhos. Alguém disposto a tentar, errar e acertar sem colocar nos erros ou idéias de outros a culpa ou glória por seus atos. Alguém capaz de ouvir, escutar e falar o que tem que ser dito. Alguém que não demore para dizer a verdade, e não esqueça que, do outro lado, ela atingirá também um poço de sentimentos comprometidos com a própria realidade.

Façamos um trato: você me contará suas histórias, suas querências passadas, os carinhos que ajudaram a fazer de você um homem. Eu te falarei sobre as paisagens que avistei do mar, sobre os faróis que me guiaram e sobre os momentos em que decidi partir. E ambos consideraremos a escola da vida do outro como o caminho dileto que nos trouxe até aqui, até esse novo porto a que pertencemos.

E quando isso acontecer, decretaremos o fim do jogo, pois não haverá mais jogo para jogar. Tampouco vencedores ou perdedores. Haverá somente duas pessoas, cada uma com sua verdade, misturando claridades.

(04.12.2006)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um pouco

Nas caixinhas, botões e ratos
de Drummond
está o pouco que fica:
o perfume
agridoce
da memória.
Os papéis coloridos
a casa em que me torno.
As vidas que tive
e suas dedicatórias.
Os guardanapos perdidos
presilhas quebradas
beijos guardados
e saudade curtida.
Curtida até o fim
da capa amarela
em que se consome.
Transforma-se em fleuma
brisa cordiforme
em que não tropeço.
Antes, caminho
com vento nos cabelos.
E coração bailante
na música das rotas.

(04.11.2011)