sábado, 17 de outubro de 2009

Trieste

Eu me lembro de quando era criança e pedia para que você pegasse em minhas mãos e me rodasse no ar. Ainda hoje, quando me lembro de você mais demoradamente, é essa a imagem que me vem à mente. Mesmo depois de todos os anos, surpresas, castigos e retomadas que todos passamos. Mesmo depois de tão mais marcantes coisas e acontecimentos no nosso caminho.

Nos meus raciocínios infantis, você era para mim sinônimo de um homem alto, um dos homens mais altos do mundo, que não falava muito mas que tinha uma risada bonita e um gesto afetuoso sempre pronto. Eu, afeita a silêncios já desde pequena, não estranhava. Gostava da Taubaína oferecida em copo americano, do cheiro de casa do interior em férias e das palavras germanas que falávamos à guisa de bom dia, boa noite, por favor e obrigado e que você gostava de responder. Há muito mais, muito mais do tempo em nós do que podemos imaginar.

E foi o tempo que me mostrou um dia, com certo espanto, que talvez você não fosse o homem mais alto do mundo. Que afinal eu já conseguia olhar para você sem me perder em elevações. Seria eu que estaria mais alta ou você que encolhia? Por muito tempo achei que você havia encolhido. Encolhido na raiva e na insensibilidade de quem, numa palavra, consegue magoar um punhado de pessoas muito importantes em um momento de dor. Por um tempo, por anos, concluí que não conhecia você. Que ninguém havia conhecido de verdade, que é possível passar a vida inteira sem conhecer alguém de verdade.

Eu, na minha dor compartilhada, nesses momentos incompreendi. Como o acusava de ter feito um dia. Mas a verdade, a verdade maior, é que nunca poderemos compreender o Mistério. O Mistério que habita em nós por trás dos horários, das convenções sociais, daquilo que o padre falou, daquilo que achamos que é certo porque é o que esperam de nós. Daquilo que nós mesmos esperamos de nós. É impossível conhecer o Mistério que nos surpreende na curva do caminho, que nos angustia, nos divide e faz viver. O nosso Mistério. Quanto mais o Mistério de outra pessoa. Ainda que haja muito em nós desse outro, que ele nos tenha doado a própria vida, histórias, tradições, células.

O seu Mistério eu nunca conhecerei. A maneira como enfrentou as travessias desde que nasceu. Como construiu sua alma e qual o quinhão do mundo nessa construção. O que pensou, sentiu, perdeu, a vontade e o sentimento das escolhas que fez. As lágrimas que derrubou antes e durante a vida e as vidas que viveu. Posso apenas ter uma pista, uma tênue idéia por trás dos discursos, das rabugices e dos temas de um cotidiano novamente próximo, passada a tempestade. Pelo olhar de ternura de quem não sabe como falar certas coisas, já entrado em tantos anos. Pelas mãos postas em torno da cabeça, a atenção constante, as músicas, a discreta obstinação. Mas também pela certeza de que no fundo, tanto os desvios de percurso quanto as voltas ao lar foram causados por esse mesmo Mistério que levamos dentro, grandioso e inexplicável, muitas vezes impossível de ser expresso fora de tantas caixinhas perdidas pela casa e pelo tempo.

Por isso, num dia como hoje, a única coisa em que consegui pensar ao encarar seu olhar tão profundo, um olhar dolorido e quase infantil, foi naquelas orações de quando era criança. Nada de grandes meditações, mentalizações ou filosofias. Mesmo depois de todas as mudanças e idas e vindas do meu próprio ser em contato com seus Mistérios. Mesmo bem-intencionada, tentando conter a covardia e o sentimento que eu sabia que não ia conseguir dominar. Hoje, tudo em que eu pude pensar foi naquela fé simples, naqueles dias e noites em que aprendi a unir as mãos e apenas agradecer ou pedir, como quem conversa com anjos trazendo presentes pelos braços.

Hoje, eu pensei naqueles dias e naquele cheiro de casa de vó da minha infância. E pedi que você esteja bem, esteja acompanhado e agasalhado, que possa dormir tranquilo e que mãos boas estejam prontas para te amparar. Pedi paz para o seu coração, e que você esteja leve, como eu ficava quando você me rodava no ar presa pelas suas mãos. E eu me sentia um pouco mais perto do céu, de onde você me olhava, o homem mais alto do mundo.

(17.10.2009)