quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Olhicerúlea

Ilustr. Stephanie Pui-Mun Law

Ninguém pode dizer o que vai pelo coração de uma mulher. O continente negro, como chamou Freud. O oceano infindável, o olhar profundo que vasculha com exatidão as almas alheias. Para aprender a ser mulher, há que se viver uma vida toda. Ou muitas. Nessas coisas a menina já pensava muito antes de perceber que pensava. Aliás, sempre pensou muito, essa menina. Um arsenal de espadas rodopiavam pela sua mente, às vezes afiadas, às vezes ferinas, às vezes intuitivas e adivinhatórias, mas sempre velozes. Ensinaram muito a ela, embora tenham cobrado de seu estômago e de sua paz de espírito algumas contas. Com o passar dos anos, a menina foi aprendendo a se equilibrar nas ondas do pensamento e nas tormentas do sentimento que havia dentro dela. Equilíbrio para o qual, também, há que se ter tempo. Um tempo de observadora, de estrategista até. Tempo de quem ouve mais do que fala, dos silêncios de uma mente ocupada com o que vai por dentro, comparando, perguntando. Tempo de quem precisa se entender e vai tentando também entender os outros, sem movimentos bruscos, com palavras econômicas porém certeiras e o olhar perguntador de um quase sacerdócio de autoconhecimento. Um tempo de Sacerdotisa.


Mas os caminhos de dentro também se revelaram atalho para o mundo lá fora. A menina percebeu que seria impossível se conhecer totalmente sem conhecer o outro, sem conhecer o livro do mundo, sentir sua luz nos olhos, seu calor na pele e seus caminhos sob os pés. Então decidiu correr por aí, por terra, por palavras ou até mesmo por lembranças suas e de outros. Usou a mente e o coração fundos da Sacerdotisa para traçar novas rotas nas terras de fora. E assim, dando voz aos pensamentos e enchendo os cálices da sensibilidade, percebeu que também suas palavras poderiam ser sementes de novas vidas. Pedaços de história que ela poderia alinhavar com as de outros, com a sua própria, com a história do céu e da terra. Viu germinar os caminhos que escolheu, assim como suas palavras nos corações das pessoas que, como ela, vinham de solo assim mutante, assim fértil. Domou o medo, nutriu-se do pomar de amizades, carinhos e sonhos que esses caminhos lhe proporcionaram. E forjada em amores, lutas e dores, se descobriu também Imperatriz.

Essa menina, porém, ainda achava que não sabia nada. E continuou buscando, andando, mudando. Ficava angustiada em acreditar que, quando mais se anda, menos se sabe. Até que, um dia, vieram as ideias, trazidas pelas espadas já companheiras, em movimento silencioso e certeiro: de que o viajar é a grande lição da viagem. De que a música não é feita apenas do som, mas também do intervalo de silêncio entre as notas. E de que, como bolo em cozimento, a sabedoria vai se formando assim, no silencioso do coração, até que um dia brota com cheiro de alimento fresco na nossa mente.

Depois disso, a menina já anda com mais calma pelas estradas da vida, ainda tentando entender os repentes e voltas de sua natureza humana e feminina. Mas já agora, degustando a sabedoria do instante, aparando as arestas e buscando a dança sincrônica com as espadas que ainda voam - ouvindo com atenção as histórias do que há lá na frente, lá longe ou aqui ao lado. Em meio às tempestades e estios, cultiva com orgulho sereno seu lado aprendiz, na leveza de uma criança de copas. A cada dia, busca nadar melhor nas correntes profundas da sabedoria desse Sacerdócio. E nesta toada, vai lançando sementes douradas que formam, ao lado das famílias da alma, seu novo caminho e colheita.

(20.12.2009)